terça-feira, fevereiro 16, 2010

Apresentamos a seguir quatro artigos do teólogo Leonardo Boff.
Todos estão disponíveis em seu site (http://leonardoboff.com/)
e foram publicados em 2002 e 2008.
História da sustentabilidade
Por Leonardo Boff
A categoria sustentabilidade é central para a cosmovisão ecológica e, possivelmente,
constitui um dos fundamentos do novo paradigma civilizatório que procura harmonizar
ser humano, desenvolvimento e Terra entendida como Gaia. Comumente a
sustentabilidade vem acoplada ao desenvolvimento. Oficialmente o conceito
desenvolvimento sustentável foi usado pela primeira vez na Assembléia Geral das
Nações Unidas em 1979. Foi assumido pelos governos e pelos organismos multilaterais
a partir de 1987 quando, depois de quase mil dias de reuniões de especialistas
convocados pela ONU sob a coordenação da primeira ministra da Noruega Gro
Brundland se publicou o documento Nosso Futuro Comum. É lá que aparece a definição
tornada clássica:"sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades
presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas
próprias necessidades".
Na verdade, o conceito possui uma pré-história de quase três séculos. Ele surgiu da
percepção da escassez. As potencias coloniais e industriais européias desflorestaram
vastamente seus territórios para alimentar com lenha a incipiente produção industrial e
a construção de seus navios com os quais transportavam suas mercadorias e
submetiam militarmente grande parte dos povos da Terra. Então surgiu a questão:
como administrar a escassez? Carl von Carlowitz respondeu em 1713 com um tratado
que vinha com o título latino de Sylvicultura Oeconomica. Ai ele usou a expressão
nachhaltendes wirtschaften que traduzido significa: administração sustentável. Os
ingleses traduziram por sustainable yield que quer dizer produção sustentável.
De imediato surgiu a questão, válida até os dias de hoje: como produzir
sustentavelmente? Apresentavam-se para o autor quatro estratégias. A primeira era
política: cabe ao poder público e não às empresas e aos consumidores regular a
produção e o consumo e assim garantir a sustentabilidade em função do bem comum.
A segunda era a colonial: para resolver a carência de sustentabilidade nacional
impunha-se buscar os recursos faltantes fora, conquistando e colonizando outros
paises e povos. A terceira era a liberal: o mercado aberto e o livre comércio vão
regular a demanda e o consumo, resultando então a sustentabilidade que será melhor
assegurada se for apoiada por unidades de produção nos paises onde há abundância
de recursos necessários para a produção. A quarta era técnica: para superar a
escassez e garantir a sustentabilidade buscar-se-á a inovação tecnológica ou a
substituição dos recurso escassos: em vez de madeira usar carvão e mais tarde, em
vez de carvão, o petróleo.
Hoje com a distância temporal podemos dizer: se houvesse triunfado a estratégia
política em razão do bem comum, a história econômica e social do Ocidente e do
mundo teria seguido o caminho da sustentabilidade. Haveria seguramente mais
eqüidade (os custos e os benefícios seriam mais igualmente distribuidos), viver-se-ia
melhor com menos e havera mais preservação dos ecossistemas.
Mas não foi este o caminho escolhido. Foi o do colonialismo, do imperialismo, do
globalismo ecômico-financeiro e da economia política de mercado que gerou a grande
transformação (Polanyi) com a mercantilização de todas as coisas e o submetimento
da política e da ética à economia. A crise ecológica atual deriva deste percurso que,
mantido, poderá ameaçar o futuro da vida humana. Agora é tempo de revisões e de
buscas de alternativas paradigmáticas.
Pegada ecológica e social
Por Leonardo Boff
Quanto agüenta a Terra em sua generosidade ao nos fornecer todas as condições para
que possamos viver, nos reproduzir e coevoluir? Não só nós mas toda a comunidade
de vida que vai das bactérias aos vegetais e animais? Ela é um planeta pequeno, finito
em seus recursos e já velho. Temos que viver dentro das capacidades de fornecimento
e de reposição, próprios da Terra e não ao nosso bel prazer. A espécie homo
sapiens/demens ocupou 83% do planeta e consumiu excessivamente a ponto de a
Terra já ter ultrapassado em 25% sua capacidade de recarga. A seguir esta lógica, o
planeta quebra como qualquer empresa que gasta mais do que ganha.
Como todos extraem da Terra seus recursos para viver, quanto de chão cada um
precisa para garantir sua sobrevivência? Quanto de terra produtiva, área florestal,
energia, habitação, água, mar, urbanização e capacidade de absorção dos dejetos cada
pessoa necessita? A esse conjunto de fatores ecológicos e sociais se chama de pegada
ecológica e social , expressão cunhada por Martin Rees e Mathis Wackernagel ao
fazerem um estudo sobre o tema para o Conselho da Terra em 1977. Eles tomaram
como referência de cálculo o número de hectares necessários para que cada um, cada
cidade e cada pais possam viver de forma minimamente decente. O planeta dispõe de
10.8 bilhões de hectares produtivos que é menos que 25% de sua superfície. Para
cada pessoa viver fazem-se necessários pelo menos 2.8 hectares. Esta seria a pegada
ecológica média geral.
Como 18% da humanidade consome 80% dos recursos vitais e os hábitos de consumo
variam consoante as regiões e as culturas, varia também a porcentagem de hectares
per capita usados. Assim a Europa, os Estados Unidos, o Japão, a Índia e a China
vivem muito acima daquilo que lhes é permitido por seus recursos ecológicos, com
uma pegada que vai de 200% até 600% (é o caso do Japão) de sua biocapacidade
nacional. Isto significa que se uma região se apropria de mais hectares para manter
seu alto nível de consumo (Norte), a outra deverá forçosamente ocupar menos (Sul).
Em outras palavras, o consumo alto de um pais ou região comporta um sub-consumo
baixo no outro. Por ai se entende a profunda falta de equidade na repartição dos bens
e o caráter desigual de todo o processo de produção e consumo mundial.
A biocapacidade total do território brasileiro é de 18.615.000 pontos. A pegada
ecológico-social brasileira é de 2.6 hectares. Nossa biocapacidade excede tanto a nossa
demanda que o Brasil poderia ser a mesa posta para as fomes e as sedes do mundo
inteiro. Mas nos paises notam-se profundas diferenças. Enquanto um habitante de
Bengladesh possui uma pegada de 0,5 hectares, a de uma norte-americano é de 9,6.
Em outras palavras, se todos os habitantes da Terra tivessem o nível de consumo
norte-americano, precisaríamos de três Terras semelhantes a nossa para garantirmos
os recursos energéticos e materiais suficientes. Vivemos, pois, sem nenhuma
humanidade e solidariedade. Por isso esse modo de viver é totalmente insustentável e
pode levar ecologicamente a Terra a um colapso.
O ideal que a Carta da Terra propõe para todos é um "modo sustentável de viver":
produzir em consonância com os sistemas vivos, contendo nossa voracidade e dando
tempo para que a Terra se regenere e continue a oferecer a nós e à comunidade de
vida tudo o que todos precisam.
Desenvolvimento ou sociedade sustentável?
Por Leonardo Boff
A reflexão crítica tem criado vasto convencimento de que o propalado
"desenvolvimento sustentável" no sistema capitalista (pode ser válido num sistema
localizado) é uma armadilha que cabe denunciar. A lógica do desenvolvimento neste
sistema imperante contradiz a lógica da sustentabilidade. Ele se entende linear,
ilimitado e supõe o infinito dos recursos da natureza. A sustentabilidade nos alerta de
que vivemos num pequeno planeta, super-habitado, com recursos limitados, alguns
renováveis e outros não. Se não elaborarmos um desenvolvimento (que precisamos)
bem dosado e equitativo do qual todos possam se beneficiar, inclusive os demais
membros da comunidade de vida à qual pertencemos, podemos ir ao encontro de um
desastre.
Analistas como o prêmio Nobel de química Christian de Duve começa seu conhecido
livro Poeira vital: a vida como imperativo cósmico afirmando que estamos assistindo a
sintomas globais que, outrora, no processo evolutivo, antecipavam grandes
devastações que atingiram a Terra. Mas há uma diferença, diz ele: outrora eram
meteoros rasantes ou cataclismas naturais que devastavam a biosfera. Hoje o meteoro
rasante mais perigoso se chama ser humano. Temos que cuidar e vigiar esse
"meteoro" ameaçador e imprevisível.
A melhor forma de fazê-lo é deslocar o eixo do desenvolvimento para o da
sustentabilidade. O que importa é termos uma sociedade sustentável que encontre
para si o desenvolvimento de que precisa para garantir a base material de sua
reprodução fazendo com que então o desenvolvimento participe desta
sustentabilidade. Como é a sustentabilidade?
Uma sociedade é sustentável quando se organiza e se comporta de tal forma que ela,
através das gerações, consegue garantir a vida dos cidadãos e dos ecossistemas na
qual está inserida. Quanto mais uma sociedade se funda sobre recursos renováveis e
recicláveis, mais sustentabilidade ostenta. Isso não significa que não possa usar de
recursos não renováveis. Mas ao fazê-lo, deve praticar grande racionalidade
especialmente por amor à única Terra que temos e em solidariedade para com
gerações futuras. Há recursos que são abundantes como o carvão, o alumínio e o
ferro, com a vantagem de que podem ser reciclados.
Uma sociedade só pode ser considerada sustentável se ela mesma, por seu trabalho e
produção, se tornar mais e mais autônoma. Se tiver superado níveis agudos de
pobreza ou tiver condições de crescentemente diminui-la. Se seus cidadãos estiverem
ocupados em trabalhos significativos. Se a seguridade social for garantida para aqueles
que são demasiadamente jovens ou idosos ou doentes e que não podem ingressar no
mercado de trabalho. Se a igualdade social e política, também de gênero, for
continuamente buscada. Se a desigualdade econômica for reduzida a niveis aceitáveis.
Por fim, se seus cidadãos forem socialmente participativos e destarte puderem tornar
concreta e continuamente perfectível a democracia. Por estes critérios o Brasil está
ainda longe de ser uma sociedade sustentável.
Tal sociedade sustentável deve se colocar continuamente a questão: quanto de bem
estar ela pode oferecer ao maior número possível de pessoas com o capital natural e
cultural de que dispõe? Obviamente esta questão supõe a prévia sustentabilidade do
Planeta sem a qual todos os demais projetos perderiam sua base e seriam vãos.
Contradição insustentável
Por Leonardo Boff
O ''desenvolvimento sustentável'', fórmula mágica com a qual o sistema mundial de
convivência e de produção pretende resolver os problemas que ele mesmo criou,
representa, por mais oficial que seja, uma contradição, um equívoco e uma ilusão.
É uma contradição, pois os dois termos se rejeitam mutuamente. A categoria
''desenvolvimento'' provém da área da economia dominante. Ela obedece à lógica
férrea da maximalização dos benefícios com a minimalização dos custos e do tempo
empregado. Em função desse propósito se agilizam todas as forças produtivas para
extrair da Terra literalmente tudo o que é consumível. Ela vem torturada pela
tecnociência e submetida a um assalto sistêmico de suas riquezas no solo, no subsolo,
nos ares e nos mares. O resultado é uma produção fantástica de bens materiais e
serviços, mas distribuídos sem justo equilíbrio. Essa falta de equilíbrio está destruindo
a paz entre os povos e ameaçando a biosfera, submetida a estresse quase
insuportável.
A categoria ''sustentabilidade'' provém do âmbito da biologia e da ecologia, cuja
lógica é contrária àquela desse tipo de ''desenvolvimento''. Por ela se sinaliza a
tendência dos ecossistemas ao equilíbrio dinâmico e se enfatizam as interdependências
de todos, garantindo a inclusão de cada ser, até dos mais fracos. Como se depreende,
unir esse conceito de sustentabilidade ao de desenvolvimento configura uma
contradição nos próprios termos.
Dizíamos ainda que o ''desenvolvimento sustentável'' representa um equívoco. Sim,
pois, se alega como causa aquilo que é efeito. Diz-se que a pobreza é a causa da
degradação ecológica. Portanto, quanto menos pobreza e mais desenvolvimento,
menos degradação. Analisando, porém, as causas reais da pobreza e da degradação,
vê-se que resultam exatamente do tipo de desenvolvimento praticado. Ele explora as
pessoas, empobrecendo-as, e delapida a natureza em seus recursos, degradando-a.
Por isso, a utilização política da expressão ''desenvolvimento sustentável'' representa
uma armadilha do sistema: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para
esvaziá-los e assim mascara a verdadeira causa do problema social e ecológico (tipo
de desenvolvimento) que ele mesmo é.
Por fim, a fórmula ''desenvolvimento sustentável'' significa uma ilusão. Postula-se um
desenvolvimento que se move entre dois infinitos: o infinito dos recursos da Terra e o
infinito do futuro. A Terra seria inesgotável em seus recursos. E o futuro para frente,
ilimitado. Ora, os dois infinitos são ilusórios: os recursos são finitos e o futuro é
limitado, por não ser universalizável. Se a Índia quisesse ser como a Inglaterra,
precisaria de duas Terras para explorar, como já dizia ironicamente Gandhi nos anos
50.
O ''desenvolvimento sustentável'' não é uma panacéia, mas um placebo. Persistir em
aplicá-lo, é enganar o paciente, talvez, matá-lo. É o que tememos com a biosfera.
Entender tal equívoco é entender o porquê do impasse na Cúpula da Terra, na Rio-92 e
agora em Joanesburgo-2002. A categoria mestra é sustentabilidade e não
desenvolvimento. Precisamos a Terra, a sociedade e a vida humana sustentáveis. Sem
isso não há o desenvolvimento sustentável. É o que os senhores do ''desenvolvimento
(in)sustentável'' não entendem. O Titanic está vazando água por todos os lados. Não
temos tempo a perder. Importa despertar, senão pode ser tarde demais. Isso não é
ser apocalíptico, mas simplesmente realista.

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